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Lumumba e eu

2018/01/18
lumumba

Lumumba após ser preso

 

Patrice Lumumba e eu nunca nos encontrámos.

Não é que na altura estivéssemos muito afastados: ele na então Leopoldville (agora Kinshasa), perto da fronteira com Angola, e eu no Caxito/Mabubas: a umas centenas de quilómetros, por estrada.

Quando eu ouvi falar dele tinha cerca de 10 anos de idade, e pouco depois ele morreria assassinado, num episódio que ainda hoje permanece obscuro, mas em que se sabe que houve a mão de Kasa Vubu, presidente do Congo recém independente, do governo belga de então, ex-potência colonizadora, cujo rei Balduíno aparentemente não havia gostado do discurso frontal de Lumumba na cerimónia de independência, das Nações Unidas e do então secretário –geral, o sueco Dag Hamarksjoeld, que tinham tropas no Congo em princípio para assegurar uma transição pacífica, mantendo a neutralidade, e, inevitavelmente, dos Estados Unidos, através da CIA e do Conselho Nacional de Segurança.

Ah, já me esquecia: espreitando na sombra, mas prontos a surgir à luz do dia, dois personagens sinistros, que iriam trazer ao enredo algumas das piores características da história da África pós-colonial: o golpismo, por um então jovem coronel Mobutu, e o separatismo, pelo líder regional catanguês Mose Tshobe.

Claro que, para além de não conhecer Lumumba, na altura eu não tinha quaisquer ideias políticas. Toda a minha família tendo nascido em Angola (com excepção dos avós, que para lá tinham ido no início do século (o meu avô materno até no final do século XIX, entre o Congo e Angola), sabíamo-nos portugueses porque assim o diziam os documentos, a escola (desde os reizinhos todos desde Afonso Henriques, a geografia do Minho e do Alentejo, os ramais ferroviários, o Entroncamento…), as cerimónias, a rádio, e as pessoas que vinham de Portugal – não escondendo no entanto a superioridade (“brancos de segunda…”).

Acresce que o meu pai, sendo funcionário administrativo, enquanto chefe de posto ou administrador de concelho (ou adjunto) era muitas vezes o (ou um dos) representante do Estado português nesse posto ou concelho onde nos encontrássemos.

Mas mesmo não tendo, como é evidente, quaisquer ideias políticas, tal não quer dizer que não estivesse a par – mais ou menos – do que se passava, em Angola, no Congo, e um pouco pelo mundo.

A principal “fonte de informação” eram, como seria de esperar, as conversas dos mais velhos (por muito que, por vezes, procurassem proteger-nos de preocupações inúteis). Esforço inútil: se não era em casa, era na rua, ou na escola, ou à saída da igreja, ou em qualquer outro lado.

Todos andavam preocupados, porque para além das atoardas de Salazar, toda a gente tinha a sensação – a certeza – de que o que se passava no Congo era apenas uma antecâmara do que se iria passar em Angola.

E havia outras fontes, claro.

A rádio, primeiro que tudo.

Vivemos em muitos postos e concelhos onde só se ligava a electricidade uma ou duas horas por dia (se o motor não estivesse avariado), acho que normalmente entre as 8 e as 10 da noite, para o que fosse necessário.

Pois era a essa hora também que se ouvia rádio (como é evidente, não havia transístores): notícias, um pouco de música, e já está.

Caxito, como ficava próximo da barragem das Mabubas, foi o primeiro local em que tivemos electricidade 24 horas por dia, o que equivale a uma revolução. Claro que, convém não esquecer, estou a falar das notícias “possíveis”, numa colónia, em pleno “Estado Novo”.

Mas havia ainda uma outra fonte: a imprensa escrita.

E aqui há um aspecto curioso. Nos grandes centros, talvez houvesse “comissões de censura” para a imprensa internacional. Nos concelhos, essa tarefa era entregue às administrações (não sei se aos administradores, que as delegavam nos adjuntos, se directamente nestes, sei que normalmente iam parar ao meu pai). Ora o meu pai, ou por não ter pachorra para aquilo, ou por achar que tinha mais que fazer, deixava as revistas lá por casa (Paris Match, Time, O Cruzeiro, Manchete, Life, etc.), até as devolver.

Depois, Caxito encontra.se numa situação muito particular: ao mesmo tempo próximo de Luanda e do norte de Angola (zona de passagem), e com uma população com uma qualificação superior à média, tal como por exemplo a da periferia de Luanda ou Catete –para não fugir às palavras, pessoas que a terminologia colonial designava por “assimilados”. Assimilados, talvez, mas não submissos.

Recordo um episódio, antes ainda de antes de a guerra ter começado em Angola (ou “o terrorismo”, como foi denominada a luta de libertação durante todo o seu período até 1974).

Caxito era famoso pelo seu carnaval. Um carnaval genuíno, popular, em que as populações dos bairros à volta da vila participavam com os seus grupos, as suas danças e as suas músicas (recordo uma, “Cidrália”, que nunca mais ouvi).

Havia um senhor – não costumo citar a cor da pele, mas aqui impõe-se dizer que era negro – que vinha todas as semanas de Luanda na sua motorizada NSU vender lotaria na zona de Caxito, e eventualmente nas redondezas. Recordo um homem simpático e afável, que todas as semanas era esperado, para vender as cautelas e mostrar a lista para se ver se havia algum prémio.

Bom, no último carnaval antes da guerra (portanto terá sido o de 1960), houve uma discussão entre esse senhor e outro senhor – branco, e adianto já que não sei quais os motivos da discussão, nem quem tinha razão – e o cauteleiro acabou atirado para a vala de rega da companhia do açúcar.

Claro que, em si, a queda na vala não representava nenhum risco grave do ponto de vista físico: eu próprio e os meus colegas da escola primária mergulhámos muitas vezes nela, não era preciso saber nadar, todos tínhamos pé.

O factor chave aqui foi a humilhação, e a presença da multidão que festejava o carnaval. Lembremo-nos que tudo isto se passa já após o assassínio de Lumumba, e ainda durante grande tumulto no Congo, em particular no Katanga.

A multidão começa a juntar-se, a protestar, a ameaçar, a dirigir-se para a frente da administração. O meu pai, como responsável da administração do concelho (na ausência do administrador), teve de se desdobrar em diplomata. Não sei como ele fez, mas nós víamos que ele estava evidentemente preocupado: as populações negras estavam indignadas, a população branca (em muito menor número), entre o temeroso e o mostrando já algumas armas, e as únicas “tropas” de que dispunha eram seis ou sete sipaios, alguns dos quais vinham do carnaval, e em última análise nunca se sabia bem de que lado estavam.

É certo que Luanda está só a 60 quilómetros, mas mesmo assim ainda é pelo menos uma hora até algum reforço chegar.

Como digo, não sei qual a táctica utilizada pelo meu pai. À distância, parece-me que optou por falar com os membros mais destacados de ambas as comunidades (isso eu sei que ele conhecia bem – eram conhecimentos que lhe ficavam para a vida toda, e que ele reencontrou mesmo depois da independência), e que da parte destes encontrou a receptividade e a sensatez necessárias para serenar os ânimos, pelo menos em grande parte.

Quando, ao fim da tarde, chegou de Luanda uma pequena força policial, já havia poucas pessoas pelas ruas.

Mas o que eu queria realçar com este episódio era o seguinte: o que eu recordo daqueles tempos é a sensação de que qualquer fagulha acenderia a fogueira – tal como viria a acontecer no ano seguinte, em janeiro na baixa do Cassange, em Luanda a 4 de fevereiro, e a 15 de março no norte de Angola, também em alguns postos do Caxito – como em Quicabo, onde nós estivemos a almoçar, na casa do chefe de posto, Melo, uma semana antes.

Não deveria meter num texto que começa com uma tragédia – e da qual o Congo ainda não se libertou – episódios semi-humorísticos. Mas como está ligado – e não esqueçamos que toda a tragédia tem – normalmente – duas faces, neste caso, à tragédia secular dos congoleses, não podemos deixar de esquecer os belgas que lá viviam, e que não eram certamente todos exploradores e saqueadores.

Com a independência do Congo, Angola, e em particular, Luanda, tornou-se o ponto preferencial de saída dos belgas. Sim, “refugiados”, era o nome por que eram conhecidos em Luanda os belgas que eram vistos a circular, de carro ou a pé, e organizaram-se formas de os ajudar (os que precisavam).

Ora, acontece que por aquela altura, eu e o meu irmão Carlos eramos assim para o louro, tal como o meu pai (a minha irmã não, saiu morena como a minha mãe). Andávamos nós por Luanda, com a minha mãe, às compras, quando um grupo de senhoras, certamente com as melhores intenções, literalmente nos ataca: “Coitadinhos dos refugiados, precisam de ajuda, diga do que precisa?”

Foi difícil à minha mãe convencer as boas almas de que não eramos refugiados, de que graças a deus não precisávamos de nada.

E quanto a Lumumba?

Só mais tarde, claro, compreendi, a sua estatura, a ignomínia em que estiveram envolvidos os suspeitos do costume na consumação da sua tragédia.

Se ele tem sobrevivido, a história do Congo (e dos países vizinhos) teria sido diferente?

Nunca o saberemos, como é evidente.

Sabemos quem foram os vencedores (Mobutu foi um deles), e só as leis da vida os afastaram.

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