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Espanha, terrorismo e democracia

2004/03/17

O brutal e sanguinrio acto terrorista nos comboios de Madrid, na semana passada, para alm de nos recordarem a ameaa que paira sobre todo o mundo e para renovarmos a sua condenao incondicional e a determinao de activamente a combater, tiveram alguns desenvolvimentos posteriores que merecem a nossa reflexo.

1. No h terrorismos bons ou maus, nem uns melhores que outros, por diferentes que sejam as suas motivaes ou os seus modos de actuao. Do ponto de vista das vtimas de Madrid, e da segurana dos cidados espanhis ou residentes em Espanha, indiferente quem sejam os autores do atentado.
Mas acontece que ele ocorreu num perodo muito particular, o fim da campanha eleitoral para as Cortes, campanha imediatamente suspensa por (se no erro) todas as foras concorrentes. E nesse momento que o governo e o Partido Popular que o sustentava se lanam num aproveitamento ignbil da tragdia, afirmando peremptoriamente que o atentado havia sido obra da ETA, a hiptese que melhor o servia em termos eleitorais. Aznar telefona a directores de jornais afirmando isso mesmo. A ministra dos negcios estrangeiros, Ana Palacios, d instrues ao seu corpo diplomtico para passar para todo o mundo a mesma mensagem. A TVE, controlada pelo governo, em todos os servios noticiosos se referia ao “atentado da ETA”, como eu prprio pude comprovar durante quinta e sexta-feira. No sbado, o candidato do PP, Mariano Rajoy, o primeiro a violar as disposies do perodo de reflexo afirmando em conferncia de imprensa que tem a “profunda convico moral” de que foi a ETA a executora, e a TVE altera a sua programao, substituindo o filme programado (Shakespeare in love) por um documentrio sobre os atentados da ETA. Tudo isto quando os servios de informaes e segurana (obviamente com o conhecimento do governo) j dispunham de indcios que apontavam na direco de fundamentalistas islmicos.
Foi esse comportamento despudorado e oportunista que os eleitores castigaram e repudiaram nas urnas, dando a vitria ao PSOE.

2. Nas suas primeiras intervenes, o futuro primeiro-ministro espanhol, Jos Lus Zapatero, reafirma a condenao da guerra do Iraque e declara que as tropas espanholas a presentes se retiraro, a menos que as Naes Unidas decidam at Junho o enquadramento da transio.
Esta proclamao, saudada por muita gente, foi por alguns considerada como uma capitulao ao terrorismo (alis o mesmo foi dito relativamente ao sentido do voto espanhol), como se para os terroristas seja prefervel ter no governo um partido e no outro. Voltou-se a proclamar alto e bom som a necessidade de o ocidente estar unido na luta contra o terrorismo, etc.

Ora estes “puros anti-terroristas” esquecem, ou fazem de conta que esquecem, a primeira afirmao de Zapatero: a de que a sua primeira e mais importante prioridade era precisamente a luta contra o terrorismo. Foi bem claro quanto a essa questo.

3. O grande equvoco que alguns querem continuar a alimentar a identificao entre a luta contra o terrorismo e o apoio guerra do Iraque. Hoje claro para toda a gente que a guerra contra o Iraque no teve nada a ver com aquela que se esperaria fosse, tambm e sobretudo para os Estados Unidos, a prioridade das prioridades, a guerra ao terrorismo, antes teve a ver com outras agendas. Em termos de querra ao terrorismo, a aventura iraquiana, para alm de ter sido um monumental embuste (no vale a pena repisar nas falsidades propaladas por governos democrticos e repetidas por inmeros ces de guarda, na chantagem feita sobre outros pases, no divisionismo da Europa para melhor reinar, no espezinhar da ONU), foi um enorme desperdcio de tempo, recursos e vidas humanas, que no s no combateu o terrorismo, antes lhe abriu novos terrenos. Onde antes havia, sim, um regime desptico e sanguinrio, de que ningum tem saudades mas que, como se viu, de to debilitado cairia a qualquer momento, coexistem hoje radicalismos, fundamentalismos, regionalismos, etc.

O que no se teria ganho se esses recursos todos tivessem de facto sido aplicados na luta contra os novos terrorismos, no desenvolvimento de servios e sistemas de informaes e segurana, na cooperao voluntria e na troca de informaes, aplicando apenas o “hard-power” onde se pudesse atingir de facto os grupos terroristas?

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